Tomar pé do que se faz, diariamente, seja embebido no cotidiano cosmopolita de uma grande cidade, seja tocando gado num remoto planalto qualquer da savana africana, não apenas custa tempo, educação, vigilância crítica, mas implica na revisão dos prazeres hedonistas aos quais crescemos habituados na sociedade de consumo do ocidente – particularmente aqueles sob a órbita de influência cultural e corporativa dos EUA, como o é o nosso Brasil.
Comer um bife com fritas, levar o filho à escola de automóvel, assistir um jogo do Corinthians na tevê, tomar uma garrafa de água mineral são pequenas coisas de nosso cotidiano que seguramente não terão o mesmo significado trivial para o cidadão crítico que se está configurando para as próximas gerações. Agora me diga: tem algo que parece mais inocente e puro que uma garrafa de água mineral?
Há, no ar, um grande vazio, quiçá espiritual, preenchido pelo hedonismo. Numa sociedade de consumo, este hedonismo se manifesta nas diversas facetas, evidentemente, do consumo. Comida, bens materiais, sexo, cultura. O que faz a mulher solitária do engenheiro gringo extraditado que é enviado pela multinacional a um país qualquer do terceiro mundo construir outra mina extrativista? Vai às compras. O que faz o sujeito que chega à miserável casa após um dia fatigante de trabalho insosso e sem-sentido? Vai ao televisor. O que faz a elite vaidosa quando fracassa em manter a forma estética predicada pelos meios e pela propaganda? Vai à mesa de cirurgia. O que faz o jovem burguês mal amado quando tem que enfrentar o abandono dos pais separados ou que trabalham demasiado? Vai às putas.
Aos pouquinhos percebe-se a sociedade civil reagindo das mais diversas formas: regulando, fiscalizando, assistindo, tentando desesperadamente consertar com band-aid o buraco na represa. Mil ONGs e pequenas ações locais ou globais refletem a crescente insatisfação com o modelo hegemônico que nos ensinaram na escola. Mas atenção: é o despertar da unha do dedo mindinho; o buraco é bem mais embaixo.
Quem começa a perceber este vazio pode tomar a pílula azul, entrar em um estado de constante torpor e ignorar os sinais claros que tudo – absolutamente tudo – está errado ou pode tomar a vermelha e decidir controlar as próprias ações, percebendo a profundidade e as conseqüências de seus atos. É aí que entra o bife com fritas.
Não está mal desfrutar coisas prazerosas da vida; está mal projetar a felicidade no consumo de coisas vendidas como prazerosas. Pior: consumir em exagero ou sem perceber uma conseqüência ecológica. Afinal, o que pode ter a ver meu prosaico bife de coxão mole com a fome no mundo?
Texto originalmente escrito para o blog Nó Design e enviado pelo autor e amigo Marcelo Santos. Obrigado, irmão!
Fors fortuna,